segunda-feira, 18 de março de 2013

Marco Feliciano: racismo e teologia bíblica - Parte 1




Abordarei a controvérsia que envolve o empresário Marco Feliciano, que se intitula pastor e exerce funções religiosas na Igreja Evangélica Assembléia de Deus no interior de São Paulo. Desta vez, proponho uma discussão teológica e deixo o mérito da questão política e do confronto com a sociedade brasileira.

Para compreender as razões das afirmações do Marco Feliciano a respeito da controvertida maldição divina sobre o continente africano é necessário adentrar ao terreno da imaginação e da convicção religiosa, isto é, enxergar os fatos como um teólogo protestante dessa linha de interpretação enxerga. Perceber uma doutrina como seus proponentes e seguidores a vêem. As análises feitas fora do universo teológico podem incorrer em outras limitações, perigosas e improdutivas também para os opositores.

Se quero entender o que fundamenta e formular a crítica ao ponto de vista do racismo fundamentalista, se podemos chamar assim, idéias essas, que ganham maior visibilidade pela escrita descuidada de Marco Feliciano nas redes sociais, precisamos antes de tudo, compreender dois pontos fundamentais. Primeiro, viajar para a história do movimento fundamentalista estadunidense dos anos 1900. O surgimento e sistematização do fundamentalismo. Sem esse contexto, tudo o que se dirá das idéias de Marco Feliciano padecerão de sentido. Questões que aparentarão luta por direitos nem por isso deixarão de ser preconceituosas. Julga-se uma idéia sem entender sua história. É provável que o próprio Feliciano esteja desprezando a história de suas idéias e por isso pagando um preço elevado. Segundo, a hermenêutica bíblica, isto é, as teorias possíveis da interpretação bíblica, especialmente a que está adotada por Marco Feliciano e uma infinidade de pastores evangélicos brasileiros, que dado o pequeno valor e espaço a ser ocupado num púlpito, não se tornam visíveis. Digamos, é um assunto tão sem importância para a estrutura teológica e homilética da religião cristã, que não contém substância suficiente para ser explorada numa pregação. Vamos então, para a análise destes pontos.

Até o início do século XX, as igrejas evangélicas do mundo inteiro foram varridas por uma onda de crítica aos textos bíblicos, ao conteúdo da mensagem cristã, a negação da existência de personagens e idéias até então, “cridos” sem qualquer questionamento racional pelos cristãos protestantes. Trocando em miúdos, para o leitor mais comum, o movimento modernista teológico, liderado por teólogos protestantes de alto coturno, passaram a negar a existência de uma pessoa física e real chamado Jesus Cristo. Passaram a afirmar que a Bíblia era um livro de fé e não de ciência, portanto, abrigando em suas páginas erros históricos, erros científicos e teorias morais esquisitas. Os que desejarem uma leitura mais primorosa das conclusões dos modernistas, encontrarão no livro “O caos das seitas” de Van Baalen. Para os modernistas, a Bíblia mencionava reis que nunca existiram ou que não reinaram. Um caso para curiosidade seria o rei Nabopolassar, mencionado no livro de Daniel, para o qual não existiriam provas históricas, ou a Bíblia chamando Ciro de rei dos persas e medos. Além disso, os modernistas negavam os milagres, a existência do dilúvio e dando um sentido alegórico as passagens do Velho Testamento, tipo, o escritor bíblico queria transmitir uma lição. Para isto inventava uma história como se ela fosse real.

Em 1905 um grupo de teólogos de diversas igrejas, especialmente, batistas, presbiterianas e metodistas, sairam para o confronto com estas teorias, que já haviam invadido seminários, faculdades e igrejas tradicionais. Igualmente, em seu conjunto, incluiam grandes nomes da teologia mundial, historiadores eclesiásticos, conhecedores de idiomas bíblicos. Nascia o movimento fundamentalista “americano” (prefiro: estadunidense). Os fundamentalistas defenderam o método literal de interpretação bíblica, que hoje, muitos tem dificuldade de entender, embora se declarem fundamentalistas. Menciono como exemplo desta incompreensão o empresário Silas Malafaia, que também se considera pastor evangélico das Assembléias de Deus. O que é o método literal de hermenêutica bíblica? Significa, conforme, Walword e Pentecost, que cada passagem bíblica deve ser interpretada em seu sentido histórico, literal, gramatical, cultural, a menos que o próprio texto indique o contrário. Mesmo assim, qualquer idéia secundária de um texto, ampara-se na idéia primária do literalismo. De fato, é assim em qualquer idioma. Por exemplo, quando Jesus diz “Eu sou a porta”, é evidente que Ele não é uma porta de madeira, ferro, como temos em casas. Mas a idéia de porta literal, que dá entrada e saída, permanece, ainda que no plano espiritual.

Contrariando a interpretação fundamentalista, os modernistas, entendem que a Bíblia é um livro de alegorias. O que está escrito, não necessariamente, aconteceu historicamente. As palavras podem ter outro sentido, apenas uma lição para ensinar. Por exemplo, se a Bíblia diz que Abraão quase sacrificou seu filho Isaque, isso pode não ter acontecido. Foi um registro para ensinar a importância de levar a fé aos extremos. Se a Bíblia diz que Pedro andou sobre as águas, ou que o Mar Vermelho se abriu, isso pode ser algum fenômeno histórico natural ou uma ilusão de ótica, que a parapsicologia bem explicaria. Os modernistas não se preocupam com a veracidade do conteúdo bíblico, mas com o que ele pode ensinar. Além de admitir que no texto sagrado existem erros gramaticais, interpolações de tradutores, perversões, e concepções humanas dos próprios autores do texto sagrado, incluindo seus valores, seus preconceitos e seus conceitos.

O Marco Feliciano fez a opção pelo primeiro método. O problema que se pode apontar é que ele simplesmente aplica o método, mecanicamente em suas análises. Qualquer literalista com melhor formação cultural seria mais criterioso, mais abrangente e crítico com as exposições. Mas entender a literalidade de interpretação bíblica é passo necessário para concordar ou discordar do Feliciano. É necessário sermos corretos e justos. Ele não está sozinho nesse pensamento. Na maioria de nossas igrejas espalhadas pelo Brasil essa teologia está escondida atrás do púlpito. Marco Feliciano teve a imprudência ou a coragem de afirmar sua crença nela. Covardemente, está apanhando sozinho e os teólogos de alto gabarito que a esposam, não estão saindo em sua defesa. Em meu próximo comentário, retomo a questão, aplicando-a a passagem de Gênesis sobre o racismo e maldição de Cam.


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